Um mercado de US$ 50 bi (ou mais). O que está em jogo com a lei dos criptoativos

Projeto que deve passar no Congresso atraiu o interesse de gigantes globais como a Binance e da América do Sul, como o Mercado Bitcoin

Por

Bloomberg Línea — O projeto de lei que regulamenta as operações com criptoativos no Brasil deve ser aprovado nos próximos dias, segundo previsão de líderes parlamentares. O texto cria regras para todas as empresas que negociam “ativos virtuais” e pretende oferecer segurança jurídica a players do setor, o que deve se traduzir em maior atratividade para os investidores. É um mercado que foi estimado no fim do ano passado - antes, portanto, da queda recente dos preços - em US$ 50 bilhões, segundo o diretor de Política Monetária do Banco Central, Bruno Serra, em evento sobre o segmento

De acordo com o relator do projeto na Câmara, o deputado Expedito Netto (PSD-RO), já há um acordo entre os partidos para a aprovação do texto com o mesmo teor com o qual saiu do Senado. “Não há oposição, não é uma matéria polêmica. É uma matéria de desenvolvimento, positiva para toda a Casa. O tema já está maduro e não deve ter problema nenhum”, afirma o deputado.

Embora trate de todos os operadores de “ativos virtuais”, o principal alvo da regulamentação são as chamadas exchanges de criptomoedas. São as corretoras que transacionam os ativos.

De acordo com a proposta, as empresas do setor precisarão de autorização de um “órgão ou entidade da administração pública federal”, ainda não definido, para atuar, além de um CNPJ na Receita Federal e de cadastro no Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

O Congresso não pode dar atribuições a órgãos do Executivo por meio lei de autoria de parlamentar, mas a função de autorizar exchanges a funcionar e fiscalizar o mercado deve ficar com o Banco Central. O presidente da autarquia, Roberto Campos Neto, é entusiasta do assunto e foi um dos grandes responsáveis pela evolução do texto e pelo andamento da tramitação. Em nota, o BC disse que “não comenta projetos em discussão no Congresso”.

O projeto determina ainda que as empresas que negociam criptos devem seguir certos princípios, como transparência, governança, livre concorrência e defesa do consumidor, além de “controlar e manter de forma segregada os recursos aportados pelos clientes”. Elas também devem trabalhar em nome da prevenção à lavagem de dinheiro e no combate à atuação de organizações criminosas.

Especialistas em regulação financeira, como o advogado Isac Costa, explicam que há duas correntes em disputa em torno do projeto: a primeira é a dos que defendem que não pode haver regulação alguma em torno do mundo cripto, uma vez que uma das premissas desse mercado é justamente funcionar como alternativa ao sistema financeiro mundial.

A outra corrente é a dos que defendem a regulação, com base na tese de que isso permitirá segregar instituições idôneas das que não são e dizer aos clientes que o dinheiro deles está seguro.

“No Brasil, estamos no caminho de regular. Mas o projeto é bastante curto e o Congresso optou por tratar de conceitos e deixar o principal da regulação para um órgão do Executivo federal ainda não definido. Portanto, estamos falando de um horizonte de 12 a 24 meses”, diz Costa.

Deve haver inicialmente um período de seis meses de adaptação, pois o projeto prevê que a lei entre em vigor 180 dias depois de sua sanção. Faltará um decreto com atribuições a um órgão do Executivo e este deverá aprovar as resoluções para regular o mercado. “Por mais que seja uma lei que vai mudar bastante o mercado cripto, estamos falando de dois anos, o que é uma eternidade para esse setor.”

A favor da regulamentação

O projeto tem, ao menos publicamente, apoio das maiores empresas do setor. Entre as companhias brasileiras, os esforços em prol da aprovação de uma regulamentação têm sido capitaneados pelo Mercado Bitcoin, a maior exchange de cripto da América do Sul, com 3,5 milhões de usuários cadastrados. A corretora movimentou R$ 40 bilhões em negociação de ativos em 2021.

Os executivos da empresa passaram as últimas semanas em Brasília em reuniões com lideranças partidárias para explicar por que consideram importante a aprovação do projeto de maneira célere. Na sua avaliação, a regulação não pode tratar da tecnologia cripto nem de blockchain, a infraestrutura sobre a qual as criptomoedas são negociadas e armazenadas.

Segundo o CEO da Mercado Bitcoin, Reinaldo Rabelo, a lei trará mais segurança ao mercado, tanto para corretoras quanto para investidores e consumidores, e servirá para proteger as empresas que “querem uma jornada de longo prazo das que só querem ganhar dinheiro rápido”.

Rabelo lembrou que a holding do Mercado Bitcoin, a 2TM, levantou US$ 250 milhões com o SoftBank em 2021, “o que nos permite olhar para os próximos três anos”.

“O fato de um mercado existir não significa que esteja funcionando bem”, disse ele, em entrevista à Bloomberg Línea. “Não acredito que estejamos hoje com perfeito funcionamento do sistema.”

Rabelo afirma entender que as empresas brasileiras do setor serão mais beneficiadas que as estrangeiras com a aprovação da lei. Ele diz que, “sem que exista uma regulação, no mundo cripto, em certos casos de plataformas internacionais, com uma empresa registrada nas Bahamas, é possível atuar no país sem pagar imposto, sem informar o Coaf nem pagar direitos trabalhistas”.

O diretor de relações governamentais do Mercado Bitcoin, Julien Dutra, diz acreditar que a lei será importante para evitar o que ele chama de “efeito Telegram”, em referência ao aplicativo russo que não tinha representação no Brasil e que recentemente chegou a ter uma decisão do Supremo Tribunal Federal pelo bloqueio de sua operação no país por causa do descumprimento de ordens judiciais.

Dutra afirma que o projeto é apoiado por mais 645 empresas, reunidas na Associação Brasileira de Criptoeconomia (ABCripto) e em outras entidades do setor.

A negociação de criptoativos tem atraído alguns dos maiores players do setor financeiro, caso do BTG Pactual (BPAC11), da XP Inc. (XP) e do Nubank (NU), para ficar em três exemplos. Procuradas pela Bloomberg Línea, as três instituições não se pronunciaram sobre o projeto de lei.

Visão de fora

As referências às tais “plataformas estrangeiras” têm nome: Binance, a maior exchange de criptoativos do mundo. Segundo levantamento da consultoria financeira Opimas, a empresa foi responsável por 69% do dinheiro movimento em operações com criptomoedas em 2021, ou US$ 14,6 bilhões.

No Brasil, a empresa responde por uma fatia estimada por especialistas entre 45% e 50% do mercado e lidera em volume negociado, embora não haja dados oficiais sobre o setor. E se diz a favor da regulamentação. A exchange diz que “está totalmente comprometida com compliance e acredita que a regulamentação é o único caminho para que a indústria cripto possa se desenvolver e atingir o grande público”, conforme nota enviada à Bloomberg Línea.

No Brasil, a Binance pretende atuar por meio da corretora Sim:paul, cuja compra foi anunciada no início deste ano, mas ainda depende da aprovação de órgãos reguladores locais. Com a aquisição, a Binance passará a ter licenças no BC e na Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Enquanto o negócio não é aprovado, a empresa tende seus clientes brasileiros sem representação no país. A companhia afirma que lidera “o processo de desenvolvimento” do mercado de infraestrutura para tecnologia blockchain e critpoativos e trabalha “em parceria com reguladores, legisladores e governos para garantir um ambiente mais seguro”.

Em visita recente ao Brasil, em março, o CEO da empresa, Changpeng Zhao, conhecido mundialmente como CZ, esteve com o então prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), e com o então governador de São Paulo, João Doria (PSDB). A maior corretora de criptas do mundo pretende abrir escritórios nos dois estados. Executivos da Binance mantêm contato regular com autoridades do BC e da CVM, assim como acontece com grandes instituições financeiras para zelar pelos seus interesses.

Ressalvas ao projeto

Apesar da receptividade positiva de representantes do mercado ao projeto, há ressalvas na visão de especialistas. O advogado Eduardo Fucci, que trabalha em processos e negócios com criptoativos, cita como exemplo a definição de “ativos virtuais”.

O projeto aponta que a lei não vai ser aplicada “aos ativos representativos de valores mobiliários”, que hoje são regulados pela CVM. Ativo virtual, portanto, seria “a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento”, segundo o texto do projeto.

“Há muitos NFTs, por exemplo, que podem ser considerados criptoativos, mas não são usados para pagamento ou investimento. Uuma empresa interessada em fazer um token, mas que não pretende usá-lo para pagamento ou investimento, se reporta a quem? À CVM ou à ‘autoridade do Executivo federal’ citada pelo projeto? Há um custo regulatório em cima disso”, afirma Fucci.

O advogado Isac Costa ressalta que a importância da lei é “simbólica”.

“As empresas querem dizer para o mercado que não operam num velho oeste e que o dinheiro das pessoas não vai sumir de repente. Mas o Estado só vai regular o que consegue enxergar. Hoje a Receita exige que os investidores a informem sobre seus investimentos em cripto. Quem não informa não é fiscalizado. Provavelmente, aquelas pessoas que negociam em cripto com base em teses libertárias ou anarquistas vão continuar encontrando meios de continuar fazendo isso”, analisa.

*Notícia atualizada às 11h38 de 31/5/2022 para correção: ao contrário do que dizia a primeira versão do texto, a compra da Sim:paul pela Binance ainda não foi concluída e dependa da autorização dos órgãos reguladores brasileiros.

Leia também: