Bloomberg Línea — A insegurança alimentar ao redor do mundo chegou a um recorde pelo segundo ano consecutivo, de acordo com um documento publicado na última semana pela Rede Global Contra Crises Alimentares, uma aliança de agências das Organizações das Nações Unidas (ONU).
O relatório diz que cerca de 193 milhões de pessoas em países ou territórios experimentaram insegurança alimentar aguda em 2021, um aumento de 25% em relação ao ano anterior, ou 38 milhões de pessoas a mais em comparação com os números já recordes de 2020.
A insegurança alimentar acontece quando uma pessoa não tem acesso a uma alimentação adequada em quantidade e em qualidade para a sua saúde, colocando suas vidas ou meios de subsistência em risco imediato - o que é diferente da fome crônica, que é quando uma pessoa não tem acesso a uma alimentação suficiente por um longo período de tempo, comprometendo um estilo de vida normal e saudável.
O número de pessoas em crise ou pior quase dobrou entre os anos de 2016 e 2021, de acordo com o documento, e que aponta a alta como resultado de um conjunto de fatores que se retroalimentam, de conflitos ambientais e climáticos a crises de saúde e econômicas que desencadeiam ainda mais pobreza e desigualdade.
Na América Latina, o relatório cita Honduras, Guatemala, Nicarágua e El Salvador entre os países com acesso limitado a alimentos devido ao “aumento de preços de alimentos básicos e demanda de trabalho atipicamente baixa, resultante da contínua impactos econômicos das medidas de contenção do coronavírus”.
E no Brasil?
Apesar do país não ter sido mencionado no relatório, a doutora em antropologia pela Universidade de Campinas (Unicamp), Lis Blanco, que estuda sobre alimentação no país há mais de 10 anos, diz que a última publicação com números oficiais do IBGE sobre o tema, por meio da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) e aplicada na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), foi em 2017, e que por conta de “cortes orçamentários no IBGE, não temos hoje dados mais amplos”.
A reportagem da Bloomberg Línea tentou contato com o IBGE via telefone por quatro vezes. Nenhuma ligação foi atendida.
No entanto, Blanco, que participa de teses e pesquisas especificamente sobre o tema, diz que é preciso “olhar para o assunto de forma crítica e saber diferenciar fome endêmica de crise alimentar”.
“É importante pensar o que são crises de fome e o que é a fome endêmica e estrutural. As crises de fome têm a ver com guerra, catástrofes naturais, grandes crises econômicas globais, e são caracterizadas por quase que uma inanição, com a falta dos alimentos em sua quantidade, não só qualidade. Agora, se olharmos para o Brasil(...), falta acesso a alimentos de qualidade, a uma quantidade que seja adequada a uma família, a um indivíduo, e também políticas que garantam que o desemprego ou a falta de renda não prejudique a alimentação”, explica.
Blanco cita o último inquérito da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), com dados mais atualizados sobre fome e insegurança alimentar no país, coletados no período de 5 a 24 de dezembro de 2020, e que mostra que, nos três meses anteriores à coleta de dados, mais da metade dos domicílios brasileiros, ou 55,2%, tinha moradores em situação de insegurança alimentar, sendo uma fatia de 9% convivendo com a fome. Apenas 44,8% se encontravam em segurança alimentar. O levantamento também mostra que a fome é pior nos domicílios de área rural, onde chega a 12%.
De acordo com o levantamento, à época, do total de 211,7 milhões de brasileiros, 116,8 milhões conviviam com algum grau de Insegurança Alimentar e, destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente, com 19 milhões de brasileiros enfrentando a fome.
“Não há subsídio, em nível federal, ainda que cidades e estados estejam tentando incorporar a volta de restaurantes populares e investir em programas de cozinhas solidárias. Mas, de maneira geral, não existem políticas efetivas. Então, as perspectivas com certeza são de piora”, diz.
Blanco também diz que a pandemia apenas acentuou uma situação que já tinha crítica há algum tempo.
“A fome aqui é estrutural e nunca foi eliminada. Não houveram mudanças significativas em termos de políticas públicas para uma melhoria na situação de fome, risco de fome ou insegurança alimentar no Brasil. Pelos dados da Rede Penssan, praticamente metade da população brasileira está em alguma situação de insegurança alimentar e nutricional. Isso, no começo da pandemia. Se olharmos para a inflação, é claro que este número aumentou - e se olharmos para as ruas, isso também fica muito evidente.”
A Bloomberg Línea também tentou contato com o ministério da Cidadania, para perguntar sobre os programas alimentares
Combustíveis x Alimentos
Nesta segunda-feira (9) a Petrobras anunciou uma nova alta para o preço do diesel depois de dois meses, de 8,9% no litro do combustível que vende às distribuidoras, para R$ 4,91, segundo o comunicado da estatal, enquanto o preço da gasolina ficou inalterado.
Em nota à imprensa na última sexta-feira (6), a Federação Única dos Petroleiros (FUP), lembrou que o constante aumento nos preços dos derivados foi o maior responsável pela alta de 7,51% do IPCA-15 (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo-15) no mês de abril.
“A elevação dos combustíveis teve influência no custo de demais produtos, principalmente alimentícios, levando a inflação do mês passado ao maior patamar desde 1995″, diz a nota da FUP.
A Bloomberg Línea tentou contato com o ministério da Cidadania para perguntar quais medidas estão sendo pensadas ou colocadas em prática em relação à inflação e se há algum plano a ser posto em vigor acerca do tema, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
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