5 lições deste unicórnio americano para as startups da América Latina

Gigante de carros usados Carvana, com modelo semelhante ao da Kavak, startup mais valiosa da América Latina, teve queda sem precedentes

Mercados de carros usados continuam a oferecer oportunidades, na avaliação de startups como a Kavak
02 de junio, 2022 | 04:08 PM

Bloomberg Línea — A Carvana (CVNA), varejista online de carros usados nos Estados Unidos, com cinco anos de existência, viu suas ações despencarem nos últimos nove meses.

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Seu fundador, Ernie García III, sofreu uma perda de 90% em seu patrimônio líquido. As ações estão atualmente na casa de US$ 30. Uma reviravolta inesperada considerando que, conforme noticiado pela Bloomberg News, em agosto do ano passado, as ações da Carvana subiram acima de US$ 370. Isso à época valorizou a empresa em mais de US$ 60 bilhões, quase três vezes mais que a capitalização de mercado da principal varejista de carros usados CarMax (KMX) do mercado americano.

O modelo de negócios da Carvana sofreu os efeitos da crise na cadeia de suprimentos e da escassez de autopeças, além da disparada de preços de carros novos e usados. E isso não é tudo. A empresa também é afetada pelo seu crescimento desenfreado, o que a deixou com fluxo de caixa negativo.

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Um efeito dominó em 12 meses

As variáveis que levaram a Carvana a cair podem afetar o mercado de vendas online de carros usados no México e na América Latina em um efeito dominó, dada a integração dos blocos econômicos. Tal desastre, dizem especialistas, afetaria mais a Kavak, a startup mexicana que se autodeclara um fator de revolução no mercado da região e que atualmente está presente no México, na Argentina e no Brasil.

A Creditas, fintech brasileira avaliada em US$ 4,8 bilhões depois de uma rodada liderada pela americana Fidelity no começo deste ano, também tem um negócio de venda de carros usados por e-commerce, depois que comprou a startup Volanty no ano passado.

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A Bloomberg Línea consultou especialistas da indústria automotiva e de capital de risco para entender se empresas com esse modelo de negócio na América Latina poderiam sucumbir como a Carvana.

Guillermo Rosales, presidente-executivo da Associação Mexicana de Distribuidores Automotivos (AMDA), disse que a queda das ações da Carvana pode se dever ao fato de que “os mercados estão antecipando as expectativas da economia real”. Isso, diz ele, pode explicar de certa forma o que está acontecendo em termos de expectativas de oferta, não só nos Estados Unidos. “Os Estados Unidos são o maior e mais relevante mercado, o que, de certa forma, marca e antecipa tendências.

Alberto Torrijos, sócio líder da indústria automotiva da Deloitte, afirmou que o efeito dominó chegará ao México e à América Latina. “Vão ser complicadas algumas variáveis que vão fazer com que o mercado de seminovos diminua, mas não será de imediato porque o que estamos vendo nos Estados Unidos é uma questão de ações, de expectativas e de dependência rumo aos carros elétricos. Isso muda as expectativas dos investidores. O efeito dominó pode ser visto, na nossa perspectiva, em 12 ou 15 meses.”

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Abaixo seguem 5 desafios enfrentados pela Carvana que podem servir de lição para startups da América Latina:

1. Controle de custos

Nos Estados Unidos, os compradores de veículos usados sofrem com preços exorbitantes e poucas opções. Além disso, a crise de escassez de semicondutores ainda está afetando os valores e a fabricação de carros novos. Comprar um carro usado custa o mesmo ou mais que um novo neste ano.

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Em 2021, o aumento dos preços de carros e caminhões usados foi de 37,3% em relação ao ano anterior, segundo dados do Bureau of Labor Statistics dos EUA.

No México, os efeitos da crise na cadeia produtiva e logística não foram tão graves. Rosales destaca que o preço dos carros novos aumentou 9% em abril de 2022 em relação ao mesmo mês de 2021 e estima que o dos carros usados subiu 15%.

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No caso da Carvana, a empresa vinha crescendo, mas, como mostrou a Bloomberg News, o acerto de contas veio em fevereiro, quando a startup sucumbiu à escassez de modelos que assola o setor e registrou seu primeiro declínio sequencial nas vendas trimestrais no varejo.

Colapso de Carvana | As ações da varejista de carros usados caíram 90% em relação ao pico de agosto

Como consequência, o fluxo de caixa consistentemente negativo da Carvana piorou: a empresa gastou quase US$ 4 bilhões desde o início do ano passado. Para sair dessa situação, a Carvana publicou um plano operacional descrevendo como controlará as despesas e priorizará a lucratividade e o fluxo de caixa.

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No caso da Kavak, Federico Ranero, diretor de operações da startup, disse que a escassez de autopeças e semicondutores não afeta o negócio. Ele contou que a empresa dilui os custos de transporte (que são os que aumentaram em até 100%) na compra de autopeças, prevendo de quantas precisarão em seu estoque por meio de um sistema de roteirização e expedição e comprando em grande volume diretamente dos fabricantes. A empresa, segundo Ranero, tem estoque próprio porque o custo logístico para poucas unidades é muito alto.

“Percebemos que depender de terceiros nos tornava muito ineficientes e desenvolvemos muitos esquemas de colaboração com especialistas do setor que nos permitem integrar verticalmente”, disse, sobre o estoque de autopeças.

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Isso lhes permitiu uma eficiência de 30%. “O que é muito maior do que o impacto macro que vimos, em que o custo das autopeças está entre 5 e 10%”, disse Ranero, durante uma visita de imprensa no centro de recondicionamento da Kavak em Lerma, no Estado do México.

Diante de uma bolha de preços, explica Rosales, da AMDA, “é muito provável que os mercados antecipem uma queda de preços diante da perspectiva de normalização da oferta. Já em abril nos Estados Unidos, os preços dos veículos usados não tiveram um aumento substancial.”

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Ele afirmou que, no caso da Carvana, os ajustes operacionais com demissões podem ser decorrentes da tendência de normalização da oferta. Foi algo que também aconteceu na startup indiana Cars24 há alguns dias, quando demitiu 600 funcionários.

2. Crescimento planejado

A Bloomberg News relata que, nos últimos anos, a Carvana seguiu uma estratégia de crescimento a todo custo para devorar o máximo de estoque possível em um momento em que todos os participantes do setor estavam sentindo pressões de oferta e pagando muito caro por veículos usados.

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Os investidores Tiger Global e Maverick optaram por aumentar suas participações na concessionária online de carros usados após uma queda de 65% em suas ações.

No caso da Kavak, o crescimento tem sido cauteloso, segundo Ranero. Ele disse que a empresa estudou toda a sua operação e a aperfeiçoou por quatro anos antes de sair para outras cidades para replicá-la.

A empresa fundada em 2016 expandiu-se para outras cidades do México até 2020, quando recebeu o status de unicórnio avaliado em US$ 1,15 bilhão, após um investimento de US$ 400 milhões de fundos de capital de risco como SoftBank, DST Global, Greenoaks, Kaszek Ventures e General Atlantic.

A primeira cidade com centros operacionais fora da área metropolitana da capital mexicana foi Guadalajara, com um investimento de 32 milhões de pesos mexicanos, seguida por Monterrey, Puebla, Querétaro e, recentemente, Cuernavaca. No ano passado, o unicórnio iniciou operações na Argentina e no Brasil.

Rosales diz que os efeitos do crescimento acelerado e da queda dos preços e da demanda por carros usados podem ser diversos nos diferentes players de carros usados, e tudo depende da gestão de estoque.

“Quando há bolhas de preços no mercado, no topo da curva de escalada de preços está se o estoque é considerável. Quando os preços começam a cair, o valor de aquisição do carro usado pode a qualquer momento ser maior que o valor de venda e causar prejuízos”, diz o líder da AMDA.

Ele destaca que, em empresas públicas como a Carvana - que tem a obrigação de tornar seus indicadores econômicos, financeiros e operacionais transparentes ao mercado -, é fácil perceber esses efeitos, mas não no caso de uma empresa privada como Kavak.

3. Modelo de negócios é disruptivo?

Como a Kavak, vender ou comprar um carro pela Carvana pode ser feito principalmente de forma online. No entanto, a Bloomberg News reportou que a empresa americana sofre sérias limitações na digitalização do trabalho de inspeção e licitação de veículos usados, transportando-os para recondicionamento e, muitas vezes, movendo-os de volta para onde são revendidos, o que é um trabalho caro e competitivo.

Crescer significativamente mais rápido do que as tradicionais redes de varejo e distribuidores com os quais compete todos os dias não é tarefa trivial para a empresa americana.

A Kavak, que continuou a se expandir para a Argentina no segundo semestre com um investimento de US$ 10 milhões, insiste que seu negócio não é apenas uma plataforma de comércio online de carros usados. A startup diz que oferece “uma solução de ciência de dados” que usa inteligência artificial para capacitar a indústria de carros usados, embora não tenha explicitado como isso funciona.

É um modelo similar ao que outras empresas estão oferecendo no setor de tecnologia, um sinal de que o mercado de IA está se tornando commodity. O risco, segundo especialistas como Abdullah A. Abonamah, da Abu Dhabi School of Management, e Adrian Bridgwater, da IDG, é que as ferramentas de IA possam ser usadas por qualqu

No ano passado, a Kavak disse que investiria US$ 500 milhões em sua chegada ao Brasil, um mercado de mais de US$ 120 bilhões em sua categoria.

A complexidade do modelo de negócios da Kavak exigiu o desenvolvimento de um algoritmo de inteligência artificial, alimentado por informações publicamente disponíveis sobre os preços de lotes, agências e revendedoras automotivas para gerar um banco de dados capaz de prever o comportamento do mercado de seminovos e estabelecer preços competitivos.

Nos mais de 20 showrooms que a Kavak possui na região metropolitana e no interior do México, na Argentina (em Buenos Aires, Mendoza e Tigre) e no Brasil (em São Paulo e Rio de Janeiro), a startup mostra aos clientes que é possível realizar todo o processo de compra ou venda de carros no site ou em um aplicativo e oferece a eles uma experiência omnichannel [em todos os canais], pois ali mesmo eles podem passar o scanner no carro de seu interesse e encontrar o preço e as funcionalidades no site.

Mas, no caso de Carvana, o analista do JP Morgan Rajat Gupta disse em um relatório que “não vemos necessariamente o modelo de negócios da empresa como sendo muito superior ou disruptivo para o mercado, com distribuidores físicos bem capitalizados encontrando maneiras de crescer e gerar fortes retornos em um ambiente cada vez mais competitivo”.

O negócio que a Kavak construiu é intensivo em capital e requer infraestrutura. Seus fundadores, os irmãos Carlos e Loreanne García Ottati, além de Roger Laughlin, querem corrigir a assimetria de informação das vendas de carros usados, em que o vendedor sabe o que está vendendo, mas o comprador não sabe o que está comprando. Hoje é a startup com maior valuation da América Latina: US$ 8,7 bilhões.

A Carvana, assim como a Kavak, foi uma das empresas que se beneficiou das mudanças no comportamento do consumidor durante os períodos mais agudos da pandemia de Covid-19. Mas, à medida que as restrições diminuem e os preços dos veículos aumentam, o modelo de negócios luta para crescer.

Mesmo assim, o mercado de carros usados deve continuar crescendo a uma taxa anual de cerca de 3% no mundo, segundo previsões citadas pela Kavak, sem apontar a fonte. Em 2020, esse setor registrou um valor de aproximadamente US$ 1,2 trilhão, e as previsões de especialistas da indústria apontam que o valor das vendas desse tipo de veículo crescerá para cerca de US$ 1,5 trilhão em 2027.

A pandemia foi uma oportunidade de inovar novos produtos e soluções para a Kavak. Ranero explica que muitas pessoas queriam vender seus carros para obter liquidez. Daí surgiu uma linha de negócios: conceder empréstimos com seus carros como garantia. Então a Kavak ofereceu financiamento a taxas de juros anuais a partir de 14% e adiantamentos de 15%.

Rosales, que representa a grande indústria, destaca que a colocação de crédito para a compra de veículos usados concedidos por bancos e empresas de financiamento apresenta uma tendência ascendente de 12% face ao primeiro trimestre do ano passado, o que contrasta com o comportamento do crédito para aquisição de veículos novos, que continua em queda.

Vemos um potencial muito importante no mercado de seminovos, principalmente nos mercados latino-americanos”, enfatiza Rosales.

4. Realidade diferentes

Torrijos não descarta um efeito dominó na região da América Latina, mas não imediatamente.

Em entrevista à Bloomberg Línea, Ranero falou da queda dos negócios da Carvana. Ernie García II e Ernie García III, os fundadores da plataforma de varejo automotivo online, perderam mais de US$ 11 bilhões juntos até agora neste ano. Com esse derretimento de patrimônio, eles não estão mais entre os detentores das 500 maiores fortunas do Bloomberg Billionaires Index.

Apesar do que aconteceu com a Carvana, o COO da Kavak diz que seu modelo de negócios não está em perigo. “Continuamos a ver uma crescente adoção do cliente e compreensão de ambos os lados da equação [compra e venda de carros]. Aqui eles podem encontrar alternativas que não tinham em mente antes e estamos resolvendo problemas muito diferentes dos que estão sendo resolvidos no primeiro mundo com empresas como a Carvana”, disse Ranero.

Torrijos afirma que a Kavak, e outras soluções como a OLX, estão entrando em um mercado de formalidade que os consumidores buscam há anos. “Eles entenderam o que o cliente procura em seu nicho de mercado e fazem tudo o que uma marca faz para vender um carro novo, além de usar ferramentas tecnológicas.”

No mundo real, a Kavak tem se esforçado para satisfazer seus clientes. Nas redes sociais, os usuários têm exposto suas discordâncias sobre o serviço no México. Um ex-funcionário que trabalhava no serviço pós-venda (que solicitou que seu nome não fosse divulgado porque havia assinado um acordo de confidencialidade) disse à Bloomberg Línea que, de todas as vendas, cerca de 30% recebem reclamações, embora algumas sejam relacionadas a problemas menores.

Em entrevista anterior à Bloomberg Línea, Juan Franck, sócio-diretor do SoftBank Latin American Fund, destacou que “quando fazemos comparações com outras partes do mundo, em geral, os mercados desenvolvidos investem mais em inovação, mas aqui investem na inclusão que está sendo exacerbada pela inovação”, disse.

“Acho muito difícil comparar e tirar conclusões sobre esses problemas, que são fundamentalmente diferentes [em países desenvolvidos e em desenvolvimento]”, disse Ranero.

Franck afirmou ainda que as plataformas latino-americanas estão resolvendo uma série de problemas maiores do que as empresas em outros mercados desenvolvidos.

“Essas plataformas na América Latina estão resolvendo um problema subjacente e em torno desse problema existem muitas oportunidades e problemas que podem ser resolvidos”, continuou Franck, embora reconheça que fazer comparações pode ser útil para entender o principal modelo de negócios.

5. Atenção ao potencial do mercado

Ranero disse que há maior demanda por carros usados quando há mais pressões econômicas. No último ano, ele afirma que a Kavak teve um crescimento de três dígitos com maior demanda, mas não divulgou números específicos durante a conversa em Lerma, no começo de maio.

O mercado de carros usados no México, país de origem da Kavak, vale US$ 60 bilhões anualmente, segundo o Statista (usando dados do Inegi e outras fontes da indústria), e mais de 7 milhões de transações são feitas a cada ano. A startup diz que mal tem 1% de penetração de mercado, com 120 mil transações realizadas em seu país de origem. No Brasil, o setor vale mais que o dobro.

Isso significa que há um grande potencial no mercado de carros usados, acredita Rosales. “Para colocar em perspectiva, no caso do mercado dos Estados Unidos, estimamos que para cada dez veículos novos vendidos em uma concessionária, doze veículos usados são vendidos; no México, para cada dez veículos novos, podem ser vendidos entre dois e três veículos usados”, disse.

A Kavak ainda não é lucrativa porque financia seu crescimento. Antes de gerar liquidez para seus investidores com um IPO - que não deve acontecer em 2022, como Laughlin disse para a Bloomberg Línea no começo deste ano -, a Kavak tem uma estratégia de crescimento não apenas na América Latina.

“Sempre vimos a Kavak como uma solução global”, disse Laughlin. Falando à Bloomberg News, uma pessoa familiarizada com o assunto disse que a startup estava de olho na Turquia como seu próximo alvo. “Buscamos mercados grandes e complexos onde a experiência de compra e venda de um carro é muito problemática”, disse o executivo, à época.

Torrijos destaca que enquanto a Kavak continuar facilitando a aquisição de um carro usado, continuará conquistando mercado. “Mas não será algo eterno porque no futuro os clientes apostarão em energia limpa. Em algum momento haverá menos veículos à combustão, embora para o mercado latino-americano isso pareça distante, cerca de dez anos.”

-- Com informações de Alejandro Angeles, Isabela Fleischmann e Bloomberg News

-- Traduzido por Isabela Fleischmann

-- Esta matéria foi atualizada no dia 3 de junho para refletir a origem dos dados compilados pelo Statista, citar referências de AI como commodity e esclarecer falas do executivo da Kavak

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Yanin Alfaro (BR)

Jornalista com experiência em startups e tecnologia

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