O que podemos aprender com os ovos de Páscoa este ano?

Com trabalho infantil e mudanças climáticas, as tradições de Páscoa podem estar prestes a mudar drasticamente

Conejitos de Pascua
Por Amanda Little
14 de abril, 2022 | 02:08 AM

Bloomberg — A Páscoa se aproxima com suas tradições de caça aos ovos e troca de chocolates, mas o retrogosto será amargo.

Um novo surto de gripe aviária nos Estados Unidos matou dezenas de milhões de galinhas nas últimas semanas, causando um déficit nos ovos que normalmente são vendidos para pintar durante os eventos do feriado – e nos lembrando mais uma vez da vulnerabilidade do suprimento de nossos alimentos. E, embora não faltem chocolates nas prateleiras das lojas, os consumidores pagarão mais, e esses preços mais altos são um prenúncio de crescentes encargos ambientais e sociais que ameaçam a indústria.

A verdade nua e crua é a seguinte: as principais fabricantes de doces como Hershey’s e Nestlé precisam revisar suas práticas de produção se quiserem continuar alimentando o vício mundial em chocolate. Um bom exemplo para essas marcas seguirem é a startup holandesa Tony’s Chocolonely, uma das marcas de chocolate que mais crescem nos EUA e na Europa. Esta pequeno chocolateria – com receita de US$ 110 milhões em 2021 em comparação com os US$ 8,9 bilhões da Hershey’s – é pioneira em práticas comerciais éticas e métodos agrícolas sustentáveis que podem salvar uma indústria cada vez mais insustentável.

No centro do desafio está a produção do ingrediente chave do chocolate: o cacau. Quase 70% dos grãos de cacau do mundo são cultivados na África Ocidental – principalmente em Gana e na Costa do Marfim – onde o clima cada vez mais quente e seco está prejudicando as safras e elevando os custos. O desmatamento severo vem aumentando à medida que os agricultores buscam mais terras aráveis.

Enquanto isso, a demanda por cacau está aumentando: um relatório recente da National Confectioners Association mostra que os consumidores devoraram quase US$ 37 bilhões em doces em todo o mundo no ano passado – um aumento de mais de 10% desde 2020, graças a campanhas de mídia social e os hábitos alimentares devido ao estresse durante a pandemia. A maior parte desse aumento foi no chocolate, com US$ 22 bilhões em faturamento em 2021.

A Hershey’s é uma empresa que teve faturamento recente sólido, mas também sentiu o aperto em sua cadeia de suprimentos: após aumentar os preços no ano passado, a empresa anunciou recentemente mais aumentos em todos os seus produtos devido parcialmente ao aumento dos custos dos ingredientes.

PUBLICIDAD

No entanto, o CEO da Tony’s Chocolonely, Henk Jan Beltman, não aumenta os preços de suas barras de chocolate desde 2019 e diz que não tem planos de fazê-lo tão cedo. Por quê? A empresa foi pioneira em relacionamentos fortes e contratos de longo prazo com seus agricultores. Os contratos oferecem salários dignos que reduzem a tendência desenfreada do trabalho infantil ilegal, além de oferecer assistência aos agricultores para que se adaptem às novas pressões ambientais e evitem os impactos devastadores do desmatamento.

De acordo com um relatório recente da Universidade de Chicago, mais de 1,5 milhão de crianças trabalham ilegalmente para produzir cacau na África Ocidental, em parte por causa dos baixos preços dos grãos – o preço de mercado estabelecido pelos países de origem, reduzido ao mínimo sob pressão da indústria. Beltman conta que, como os produtores de cacau não têm permissão para definir os preços de seus grãos, isso criou uma “armadilha” e levou a uma forma de escravidão moderna. As principais marcas de chocolate reconheceram a crise do trabalho infantil, mas não fizeram o suficiente para resolvê-la.

O desmatamento de ecossistemas exacerba essa armadilha. A Costa do marfim perdeu mais de 80% de suas florestas nos últimos 50 anos, pois as árvores foram derrubadas para abrir caminho para novas fazendas de cacau. As florestas são essenciais para a saúde e a umidade do solo, e as copas das árvores ajudam os agricultores a manejar as temperaturas.

PUBLICIDAD

Um estudo da Universidade de Harvard constatou que, até 2050, vastas áreas de Gana e da Costa do Marfim se tornarão inadequadas para o plantio à medida que a área se transforma lentamente em um deserto. Isso poderia reduzir a produção global de cacau em quase um terço. Segundo Beltman, alguns de seus fornecedores de cacau da região abandonaram as terras agrícolas do norte de Gana e da Costa do Marfim e se mudaram para o sul – regiões mais frias nas quais as chuvas são melhores.

A Tony’s Chocolonely desenvolveu cinco princípios de fornecimento que orientam suas relações comerciais com fornecedores de cacau na África Ocidental com o objetivo de construir resiliência climática. O mais notável: a empresa usa software de mapeamento da cadeia de suprimentos para rastrear todos os frutos adquiridos até as fazendas de origem – uma prática que permite à empresa garantir a qualidade, monitorar as práticas de cultivo e a saúde do solo e livrar sua cadeia de suprimentos de trabalho escravo. A empresa também apoia cooperativas de agricultores e ajuda a treinar agricultores em práticas agroflorestais e programas de reflorestamento que integram fazendas de cacau a ecossistemas resilientes e ricos em árvores.

Fundamentalmente, a empresa também se compromete com contratos de longo prazo com seus agricultores, fixando preços de 25% a 40% acima do preço ao produtor por um período mínimo de cinco anos, para que os agricultores possam investir em práticas agrícolas sustentáveis e garantir retornos ao longo do tempo. Esses contratos beneficiaram os resultados da empresa: os produtos da Tony’s Chocolonely têm um preço marginalmente mais alto que os da Hershey’s – US$ 0,81 por onça ante US$ 0,71 por onça. No entanto, a Tony’s aumentou suas vendas entre 20% e 22% a cada ano de 2019 a 2022, evitando a volatilidade dos preços de mercado nos últimos anos que fez com que grandes marcas anunciassem sucessivos aumentos de preços.

Os princípios de fornecimento da Tony’s Chocolonely foram tão bem-sucedidos que várias outras marcas emergentes de chocolate, incluindo a alemã Jokolade e a holandesa Delicata, os adotaram. As principais marcas de chocolate do mundo devem reconhecer essa tendência positiva entre os jovens pioneiros da indústria e seguir o exemplo. Todo grande fornecedor de chocolate deve aderir a três princípios específicos: rastreabilidade, treinamento agroflorestal e contratos de longo prazo com agricultores que ofereçam salários justos. Sem essas medidas, a indústria não pode sobreviver – muito menos crescer – em um futuro mais quente e seco.

Beltman me disse que é movido por uma forte consciência de que “o chocolate é um tipo muito especial de produto, um produto Willy Wonka – que não fornece aos consumidores as calorias de que precisam, mas as calorias que eles adoram”.

É isso que torna a indústria de chocolate o setor certo do ramo de alimentos para ser pioneiro em práticas e produtos que melhoram o mundo. Os consumidores devem estar mais dispostos a apoiar essas marcas com visão de futuro porque o preço mais alto é bem justificado. De fato, os consumidores têm uma responsabilidade importante aqui: ser mais criteriosos com as marcas que compram e garantir, parafraseando o próprio Willy Wonka, que boas ações brilhem em um mundo fosco.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

Amanda Little é colunista da Bloomberg Opinion. Ela é professora de jornalismo e redação científica na Vanderbilt University e autora de “The Fate of Food: What We’ll Eat in a Bigger, Hotter, Smarter World”.

--Este texto foi traduzido por Bianca Carlos, localization specialist da Bloomberg Línea.

PUBLICIDAD

Veja mais em Bloomberg.com

Leia também