Sim, os russos sabem o que seus militares estão fazendo na Ucrânia

Apesar das mentiras difundidas pelo governo russo e dos bloqueios de fontes de informação, os russos não podem ignorar os fatos

Os russos não poderão fugir desta pergunta
Por Leonid Bershidsky
13 de abril, 2022 | 11:17 AM

Bloomberg Opinion — As atrocidades que as tropas russas cometeram na Ucrânia levantam duas questões sobre os russos em casa: eles sabem que seus militares estão fazendo essas coisas? E se sim, eles estão bem com isso? As respostas são quase certamente “Sim” e “Eles estão trabalhando nisso”.

O grau de ignorância dos civis pode não importar muito para a redenção da Rússia, caso isso se torne possível algum dia. Não importava na Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial. Embora os alemães costumassem se referir ao fim daquela guerra como a hora zero, nada foi anulado pelo suicídio de Hitler e pela capitulação de seus exércitos. Quando alemães “pacíficos” diziam a seus ocupantes aliados que não sabiam o que os nazistas estavam fazendo, às vezes eram levados em massa para ver os campos de extermínio. Muitos ficaram, ou aparentaram estar, atônitos e horrorizados. Se essas emoções eram reais ou não, ao expressá-las, os alemães “inocentes” apenas forçavam os aliados a esfregar o nariz na terrível herança de Hitler.

No entanto, mesmo que a Rússia de Putin não seja derrotada militarmente, muito menos ocupada e “desputinizada” à força, a pergunta “você sabia o que estava acontecendo?” será feita aos russos quando eles solicitarem vistos, fizerem entrevistas para empregos no exterior ou apenas conversarem casualmente com ucranianos ou ocidentais. Eles usarão a mesma defesa que os alemães usaram? Alegarão que o regime de Putin cortou seu acesso a todas as informações, exceto propaganda de governo, e fizeram uma lavagem cerebral com a ideia de que os civis desarmados executados eram de fato vítimas das atrocidades da Ucrânia usando uma falsa bandeira russa?

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Tenho certeza de que alguns responderão exatamente isso, e eles terão alguma evidência para oferecer. Ostensivamente, o regime de Putin fez o possível para privar os russos de informações verdadeiras. As agências de notícias independentes foram fechadas ou bloqueadas na internet. As que ainda estão ativas não podem ser acessados sem uma rede privada virtual. Pesquise em russo por Bucha, o subúrbio de Kiev no qual as tropas russas desencadearam uma violência horrível, no mecanismo de busca russo Yandex – e você terá a versão distorcida dos eventos oferecida pelo Kremlin.

Mas esse bloqueio de informações é realmente eficaz?

Na Rússia, em março, os quatro aplicativos mais baixados para MacOS e Android eram VPNs. Pode-se argumentar que as pessoas estão usando esses aplicativos apenas para manter o acesso à Netflix e a outros serviços de entretenimento que deixaram o país desde o início da guerra na Ucrânia. Mas o quinto aplicativo mais procurado foi o Telegram, provavelmente a melhor fonte disponível de notícias sem censura sobre a guerra. Eu, por exemplo, estou usando o Telegram para acessar notícias de várias fontes russas e ucranianas.

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De acordo com uma pesquisa realizada em março, a TV é a principal fonte de informação para 50% dos russos e 45% confiam nela. Mas isso é exatamente o que as pessoas que vivem sob um regime autocrático dizem aos pesquisadores – não necessariamente o que elas realmente pensam. E mesmo que os dados da pesquisa reflitam a realidade, há uma grande diferença de idade entre aqueles que costuma assistir TV: os mais jovens assistem pouca TV e mais de um quarto dos russos adultos não assistem, em vez disso, confiam na internet para obter notícias. São eles que usam VPNs para acessar fontes de notícias independentes e se inscrever em canais não filtrados do Telegram. Eles também sabem que o Google é um mecanismo de pesquisa melhor que o Yandex.

Até mesmo o secretário de imprensa de Putin, Dmitry Peskov, admite abertamente o uso de uma VPN para acessar as redes sociais ocidentais proibidas: A política oficial é que tal uso não é passível de punição. E, de fato, até agora não houve represálias por usar o Facebook ou o Instagram, ambas organizações declaradas “extremistas”. É extremamente difícil para a polícia secreta rastrear esse uso em grande escala enquanto as VPNs permanecem legais.

E mesmo que se suponha que realmente exista uma audiência apenas de TV de pessoas mais velhas sem intimidade com a tecnologia, ela não pode ser isolada da comunicação direta com outras pessoas cujos horizontes não são tão limitados. Os russos mais velhos com seu hábito inquebrável de assistir televisão ainda ouvem falar por seus amigos e parentes mais jovens dos civis ucranianos executados.

As redes sociais estão cheias de histórias de filhos bem informados ligando para seus pais ou amigos mais velhos para contar o que está acontecendo – e se deparando com uma descrença teimosa. Mas as pessoas realmente confiam em sua TV mais do que em seus próprios filhos ou em outras pessoas que conhecem pessoalmente? Eu duvido seriamente. Eu sei, no entanto, que os russos mais velhos são extremamente cautelosos no telefone (e agora também no Skype, WhatsApp, Telegram ou qualquer outro meio de comunicação remota). Eles não se colocarão em perigo falando sobre o que é considerado heresia pelo governo – muitas pessoas sofreram por isso na União Soviética, um país com o qual a Rússia moderna se parece cada vez mais. Mesmo na privacidade do nosso apartamento, quando eu era criança, minha mãe evitava criticar a ordem soviética na minha presença – por medo de que eu deixasse escapar na escola.

Os soviéticos sobreviventes podem não ter a inteligência tecnológica de seus filhos, mas são muito mais espertos que eles no sentido de ter a sagacidade necessária para a sobrevivência em um estado policial. Eles também têm muita experiência em ler as entrelinhas da propaganda do governo. A suposição de que essas pessoas, que riram em segredo da ração ideológica soviética, de repente perderam a capacidade de desconfiar do discurso do Estado, parece-me menos plausível do que a ideia de que estão voltando ao modo avestruz em um momento que parece um tanto semelhante ao que viveram no passado.

Alexey Navalny, arqui-inimigo de Putin, agora detido em uma colônia penal, definitivamente não tem acesso a nenhuma fonte além da TV estatal. Ele twittou recentemente, por meio de um intermediário:

“Estou lhe dizendo, a monstruosidade das mentiras nos canais federais é inimaginável. E, infelizmente, o mesmo acontece com sua capacidade de persuasão para aqueles que não têm acesso a informações alternativas.”

No entanto, o tweet de Navalny revela a fragilidade da defesa da ignorância: por mais persuasivas que as mentiras da TV possam ser, Navalny claramente não está caindo no conto do vigário; seu cérebro o rejeita. Existe, é claro, apenas um Navalny – mas seria arrogante ao extremo supor que suas reações viscerais são únicas. Por que outros comprariam as narrativas do Kremlin semelhantes a Goebbels depois de anos vivendo em um ambiente de informação muito mais livre do que o que existe hoje?

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É claro que nunca se deve subestimar a capacidade das pessoas de ignorar as notícias. Dias depois que as autoridades russas baniram a Meta e seus serviços - Facebook e Instagram - como “extremistas” e decidiram bloquear o acesso a eles, muitos usuários russos ainda postavam críticas negativas nas lojas de aplicativos, reclamando que os aplicativos da Meta pararam de funcionar. Esses usuários parecem ter se isolado com sucesso de qualquer informação vinda de fora de suas bolhas aconchegantes - seus negócios de cosméticos artesanais, suas práticas de coaching, suas comunidades focadas em cães ou bebês. Esse isolamento, no entanto, exige esforço - e até mesmo aqueles que conseguiram ficar nas suas bolhas, a esta altura, provavelmente já entenderam o que está de fato acontecendo.

Alemães comuns sabiam o que os nazistas estavam fazendo, pesquisas mostraram. Mesmo com a mídia e as comunicações relativamente limitadas daquela época, os crimes dos nazistas eram impossíveis de serem ignorados, não importa o quanto alguém tentasse. Eles poderiam, no entanto, recusar-se a confessar seu conhecimento; podiam até se convencer de sua própria ignorância.

Isso também exige um grande esforço, percebo enquanto leio as postagens de redes sociais de alguns colegas russos ou ouço conhecidos de Moscou dizerem coisas como “Nem tudo é preto no branco” ou “Nunca saberemos toda a verdade”. Tenho a sensação de que, se eu pressioná-los, alguns podem explodir em lágrimas ou me atacar com raiva. A tensão está sempre presente, e não tenho certeza se está enraizada no medo ou no instinto de autopreservação: minha própria família luta para lidar com o fato de saber que as atrocidades russas também estão sendo cometidas em nosso nome.

É um fardo que temos que carregar – provavelmente pelo resto de nossas vidas. Aqueles que insistirem que foram enganados pela propaganda não ficarão livres dele. Nestas semanas brutais, apenas aqueles que são cúmplices aberta e ativamente são capazes de evitar o peso sobre os ombros de todos os russos.

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Leonid Bershidsky é membro da equipe da Bloomberg News Automation, com sede em Berlim. Anteriormente, foi colunista da Bloomberg Opinion na Europa. Recentemente, ele fez a tradução para o russo de “1984″, de George Orwell.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

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– Esta coluna foi traduzida por Marcelle Castro, Localization Specialist da Bloomberg Línea.

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